25 anos sem Stevie Ray Vaughan

Aproveitamos os 25 anos da precoce e trágica morte de SRV para revisitar seu segundo e talvez melhor álbum, Couldn’t Stand The Weather, um verdadeiro clássico do blues moderno

por Bento Araujo     27 ago 2015

SRV“Eu gostaria de ser capaz de comprar uma fazenda ou algo parecido para os meus pais. Meu pai tem alguns sérios problemas de saúde e não pode mais trabalhar, porém eu estou tentando fazer com que ele tenha uma atividade adequada a sua atual condição e não fique mais sentado o dia todo se achando improdutivo e inútil. Meus pais são idosos e precisam de tempo pra se amarem novamente, isso é o que mais desejo, e se eu não parar de falar agora, vou começar a chorar…”

Foi assim que terminou a primeira entrevista de SRV para a Rolling Stone norte-americana, em setembro de 1983. Naquele mesmo ano, Stevie havia lançado seu primeiro trabalho, Texas Flood, registro que fez o blues ser “legal” novamente e trouxe o combalido estilo cafajeste (sempre no bom sentido, é claro) de volta às paradas. Texas Flood era dedicado a Big Jim e Martha Vaughan, que logo teriam sua tão desejada fazenda, já que SRV estava tomando de assalto os charts, excursionando pelo mundo todo e se tornando rapidamente um dos maiores nomes da guitarra. No final daquele ano, o primeiro trabalho de SRV havia vendido mais de 500 mil cópias somente nos EUA, conquistando disco de ouro.

Um ano depois, a mesma Rolling Stone acabava sem a menor misericórdia com Couldn’t Stand The Weather, numa resenha assinada por Kurt Loder (sim, aquele da MTV USA): “Apesar da produção soft e sonolenta, da falta de pegada da seção rítmica, e da ausência aguda de temas interessantes, o álbum deve achar seu nicho dentre aqueles que estão sedentos por um novo herói da guitarra”. Claro, Loder não tinha a menor ideia do que estava falando… Ou ele não havia ouvido o disco com a devida atenção, ou sua cabeça estava mais sintonizada com bandas em alta naquele ano de 1984 como The Go-Go’s e B-52s.

Couldn’t Stand The Weather foi registrado de maneira drasticamente diferente de Texas Flood, esse último gravado às pressas, mais como uma demo para vender o trabalho aos grandes selos, durante um fim de semana no estúdio de Jackson Browne. Com o sucesso arrebatador da estreia, SRV e seu Double Trouble (leia-se Tommy Shannon no baixo e Chris Layton na bateria) estavam em alta com a CBS e poderiam exigir certas regalias somente cabíveis aos grandes astros do rock.

A primeira delas aconteceu quando foram reservadas seis semanas para as gravações, que aconteceriam no Power Station de New York. Cuidando dos botões estava John Hammond, o homem de negócios da CBS que havia descoberto Bob Dylan, Billie Holiday, Aretha Franklin e Bruce Springsteen, entre outros. Hammond foi crucial inclusive ao “pescar” SRV para o selo em que trabalhava. Hammond foi o verdadeiro produtor do disco, no entanto, apareceu nos créditos como “produtor executivo”. O ofício de produção na ficha técnica do elepê ficou por conta da própria banda e de Richard Mullen e Jim Capfer.

Tudo estava preparado para o início das sessões de gravação, mas uma preocupação rondava a cabeça de Stevie: ele não tinha nenhuma nova composição. A banda estava em turnê sem interrupção desde o lançamento de Texas Flood, então Stevie achou prudente alugar um galpão em Austin, Texas, e ali passar três semanas numa espécie de pré-produção de seu próximo trabalho. Qual direção musical seguir? Esse era o maior dilema enfrentado pelo guitarrista e seus dois comparsas. Richard Mullen, engenheiro e técnico de som que presenciou os ensaios, costumava dizer que Stevie tinha mais de cinco mil músicas em mente, muitas delas organizadas em listas. “O problema é que sempre que ele cheirava uma carreira de pó essa lista mudava”.

Uma prioridade seria criar algo instrumental para abrir o novo disco, e que fosse preferencialmente baseado num dos ídolos maiores de SRV, o guitarrista Lonnie Mack. Basta uma simples ouvida rápida em “Scuttle Buttin’”, a abertura mais do que apropriada para Couldn’t Stand The Weather, para sacar de onde SRV tirou sua inspiração. Ainda em Austin a banda finalizou algumas outras grandes composições que acabaram entrando no disco: “Honey Bee”, “Stang’s Swang” e “Couldn’t Stand The Weather”, essa última trazendo inovações rítmicas e de andamento no estilo do grupo, além de uma maior diversidade musical, abrangendo blues, rock, soul e jazz num só tema. Falando em jazz, “Stang’s Swang” – uma homenagem a Grant Green – era também um novo patamar alcançado pelo trio; executada com maestria por SRV, Shannon, Stan Harrison no sax e Fran Christina na bateria. Dizem as más línguas que Layton não segurou a bronca da levada puramente jazz do tema.

Com passagens compradas e malas arrumadas para NY, ficou acertado que o grupo finalmente iria registrar em rolo “Voodoo Child (Slight Return)”, o original de Jimi Hendrix que vinha sendo desde sempre um dos pontos altos dos shows de SRV. Apesar de tudo, Stevie era sempre relutante em registrá-la em disco, temendo a possível reação adversa dos puristas do blues perante a sua versão. Coube a Shannon convencer Stevie…

Com tudo acertado, o trio desembarcou em NY e ficou hospedado no Mayflower Hotel, próximo ao belíssimo Central Park. Com a gravadora bancando tudo, a banda fez o máximo para aproveitar sua estada em Manhattan, e logo estabeleceu uma forte relação com muitos traficantes locais. As drogas ajudavam a amenizar a pressão da gravadora, que exigia um novo álbum apenas seis meses depois do lançamento de Texas Flood.

Richard Mullen nunca mais se esqueceu do primeiro dia de gravação. O engenheiro pediu para que o grupo tocasse qualquer coisa para que ele pudesse ajustar o som, e subitamente Stevie e os rapazes começaram a executar uma versão para o slow blues “Tin Pan Alley”, original de Bob Geddins. Como costumava fazer em muitas sessões, Stevie permaneceu próximo à bateria de Layton, sem seus fones de ouvido, tentando ouvir o som ao vivo da banda em seu estado bruto original. A ausência desses fones também permitiam que Stevie brincasse pelo estúdio enquanto tocava, dançado pela sala de uma maneira descontraída, bem próximo do que ele vinha fazendo nos palcos. Falando em “Tin Pan Alley”, esse é certamente não só um dos pontos altos do álbum, mas de toda a meteórica carreira do guitarrista. Seu solo nesse tema é de um feeling absurdo, e não é a toa que assim que a banda terminou de executá-la no estúdio, John Hammond falou da sala de controle algo do tipo: “Vocês nunca mais vão conseguir fazer uma versão melhor do que essa”.

Para Stevie Ray Vaughan, Tommy Shannon e Chris Layton, foi um enorme prazer trabalhar com John Hammond em estúdio, porém algo que eles não esperavam aconteceu durante as gravações de Couldn’t Stand The Weather. Shannon relembrou a ocasião para a revista Guitar World: “Hammond chegava todo dia com o New York Times e sentava na frente da mesa de som, lendo o jornal, enquanto a gente tocava dentro da sala. Começamos a pensar: ‘Que porra é essa? Será que ele está ouvindo a gente?’ No fim da música Hammond falava sem cerimônia: ‘Creio que devemos tentar novamente essa canção’, ou ‘vamos em frente, essa ficou ótima’. O que posso garantir é que ele estava sempre certo”.

Hammond estava sempre de bom humor, mas estava preocupado com o crescente uso de cocaína da banda em pleno estúdio. Por algum instante os músicos tentaram esconder, mas ficou evidente que Hammond tinha sacado o vício dos rapazes quando, do nada, ele veio com um papo dizendo algo sobre seu baterista favorito: Gene Krupa. Segundo Hammond, Krupa tinha seu rendimento em estúdio prejudicado quando fumava maconha, já que sua noção de tempo e ritmo ficava comprometida. Desde então, Hammond confessou aos rapazes que havia proibido uso de drogas em suas gravações. Layton disse que a banda entendeu a mensagem, mas não obedeceu por completo o experiente produtor. O que eles tiveram que se preocupar era apenas em “esconder melhor” as drogas de Hammond.

Se o pessoal respeitava, pelo menos em parte, as vontades do experiente Hammond; o mesmo não acontecia com outros representantes da Epic/CBS, a major que lançava os álbuns de SRV.

Os executivos e o pessoal de marketing da estampa queriam agendar uma audição/festa dentro do estúdio para os jornalistas das principais publicações musicais do mundo, onde todos poderiam avaliar o novo trabalho de SRV. Claro que Stevie vetou completamente a audição aberta e ainda de quebra disse ao pessoal da gravadora algo do tipo: “Vocês curtiram meu disco anterior, certo? E ele vendeu milhares de cópias, certo? Então está provado que nós não precisamos de nenhuma ajuda ou opinião de vocês para com esse meu novo álbum, está entendido?”

Mesmo assim um funcionário da gravadora não respeitou as palavras de Vaughan e invadiu o estúdio durante uma madrugada, quando o grupo já tinha partido e terminado as sessões daquela noite. O gatuno saiu de lá com uma versão crua e não mixada de “Look At Little Sister”. Stevie descobriu a pilantragem logo no dia seguinte e ligou para o sujeito, soltando os cachorros no telefone, dizendo que não estava nem aí para o cargo do figura dentro do selo. E ainda alertou: “Nem pense em sequer entrar naquele estúdio novamente, senão o caldo vai entornar pro seu lado”. A frustração do guitarrista foi tamanha que ele fez questão de deixar “Look At Little Sister” de fora do disco. A canção só veio aparecer, e em versão regravada, em Soul To Soul, seu disco seguinte, lançado em 1985.

O selo por sua vez tinha até uma certa razão: mais de 80 mil dólares já haviam sido gastos com as despesas da banda; leia-se limusines, hotéis, garotas, restaurantes de primeira classe, drogas e tempo extra de estúdio. Nada de concreto havia sido apresentado por Stevie, então uma tensão passou a rodear a gravação do álbum, que foi concluído com muitas das faixas sendo registradas num único take, praticamente “ao vivo em estúdio”.

Jimmy Vaughan, irmão de Stevie, deu uma força nas gravações e participou da genial faixa título, tocando guitarra rítmica. Foi Jimmie inclusive que sugeriu uma pausa maior entre os marcantes riffs da abertura do tema. Sem ter sequer ensaiado tal ousadia, a banda registrou tudo de primeira, acertando os tempos de maneira impecável, para o deleite de todos na sala. Isso mostrava o quanto Stevie e seu Double Trouble estavam ensaiados. Em “Voodoo Chile”, Stevie tocou num volume tão alto que era possível ouví-lo da rua. Para a gravação de outro ponto alto do disco, “Cold Shot”, o guitarrista tirou o baterista Chris Layton da cama às quatro horas da manhã. A banda já havia ensaiado a faixa em Austin, porém Stevie estava sempre aborrecido com o arranjo. Layton admitiu depois que foi naquela madrugada, depois de ter sido praticamente arrancado da cama, que o grupo tocou “Cold Shot” com o novo arranjo. E foi essa versão que entrou no disco, já que somente os vocais foram colocados posteriormente por Stevie. “Cold Shot” foi um dos hits do trabalho, graças principalmente ao seu divertido vídeo clipe, que foi bastante veiculado pela MTV na época, assim como o vídeo também bacana da faixa título.

Terminada as gravações o trio partiu para o Havaí, onde em 15 de março de 1984 fez um show especial. Altos funcionários da CBS, departamentos inteiros de marketing da Epic, representantes de vendas dos selos, e todo mundo que fosse responsável pela promoção do novo trabalho de SRV estava presente em Honolulu para essa apresentação exclusiva. Para o trio que vinha do Texas, era a glória: sol abundante, garotas de biquini, drinks, cigarros e drogas à vontade, e muita descontração.

A performance de SRV seria o ponto alto da convenção anual da CBS, e para o guitarrista, aquele era um voto de confiança da gravadora, muito bem-vindo durante um período crítico de sua carreira, principalmente em termos de vícios e excessos. A CBS tinha milhares de opções em seu milionário cast para escolher e levar para o Havaí, mas optaram por SRV, provando que um mundo maltratado – dominado por sintetizadores e pop descartável – merecia a benção musical de um novo messias do blues. Claro que Stevie e sua banda honraram sua posição da melhor forma possível, fazendo um show memorável, incluindo inclusive novos temas que estariam no próximo disco: “Stang’s Swang”, “Scuttle Buttin’” e “Couldn’t Stand The Weather”. Um dos pontos altos da noite foi a versão de “Voodoo Chile”, onde SRV evocou Hendrix de forma sublime, levando sua Stratocaster à loucura, assim como os executivos da gravadora, que aplaudiam e gritavam efusivamente em seus assentos. Muitos deles tinham feito valiosas apostas, duvidando que SRV conseguisse manter o sucesso e prestígio de seu primeiro trabalho. Esses mais reticentes quebraram a cara quando Couldn’t Stand The Weather chegou às lojas em maio daquele ano. Nos primeiros dias após o lançamento, foram 250 mil cópias vendidas. Mais adiante a bolacha era disco duplo de platina; uma prova de que a convenção no Havaí havia funcionado e que a Epic estava trabalhando o álbum com paixão e entusiasmo, algo praticamente inédito na indústria fonográfica.

Couldn’t Stand The Weather foi relançado de forma luxuosa agora pela Sony em formato “Legacy Edition”. Além do disco original inteiramente restaurado, a nova versão dupla inclui as sessões gravadas em NY na íntegra, ou seja, onze faixas ressurgem de forma imponente. Dentre os destaques desses outtakes estão uma original de SRV chamada “Empty Arms”, a versão “abandonada” do clássico de Hank Ballard & the Midnighters, “Look At Little Sister”, e o cavalo de guerra de Earl King, “Come On” (coverizada também por Hendrix em seu Electric Ladyland); essa última aparecendo em versão diferente da utilizada por Stevie sem seu próximo trabalho: Soul To Soul. “Hide Away” de Freddie King e “Give Me Back My Wig” de Hound Dog Taylor também aparecem nesssas sobras; ambas faixas eram executadas pela banda ao vivo, porém nunca foram registradas em nenhum disco oficial de estúdio do trio.

Outras pepitas são as versões inéditas de “Boot Hill” e “The Sky Is Crying” (Elmore James), diferentes daquelas utilizadas anteriormente no disco póstumo The Sky Is Crying. “Wham!” de Lonnie Mack, “Little Wing” de Hendrix e “Close To You” de Willie Dixon também foram revisitadas naquelas sessões de janeiro de 1984, em NY, e aparecem também nesse relançamento, assim como um take alternativo de “Stang’s Swang”, dessa vez sem o saxofone. Muitos desses extras já haviam sido incluídos em discos póstumos do guitarrista, como The Sky Is Crying, mas ouví-los no contexto original de Couldn’t Stand The Weather é um privilégio, como declarou Tommy Shannon recentemente: “Claro que a gente escolheu as melhores faixas para entrar no disco na época, mas nada que registramos naquelas sessões é ruim. Com o passar do tempo você passa a ouvir tudo com mais objetividade, então eu ainda escuto aquilo e fico espantado com a qualidade do material. O jeito de Stevie tocar constantemente me surpreende. Ele estava sempre tirando alguma surpresa de sua cartola”. Layton, por sua vez, confessou que curte muito mais o disco hoje do que em 1984: “Posso apreciar melhor as coisas boas desse trabalho atualmente. Fico imaginando como teria sido se a gente tivesse maneirado nos excessos e nas festas… A verdadeira tragédia da morte de SRV está no fato de que ela (a morte) aconteceu num período em que finalmente superamos e vencemos todos esses nossos demônios pessoais.

A verdade é que fizemos o melhor que podíamos e o melhor que a gente poderia fazer naquela época hoje soa realmente muito bom”. O relançamento da Sony ainda traz de quebra um disco bônus, contendo na íntegra uma apresentação registrada no dia 17 de agosto de 1984, no Spectrum de Montreal, Canadá. Além de temas de Texas Flood, a banda nesse show apresenta de maneira entusiástica material de Couldn’t Stand The Weather.

Tanto pessoalmente como profissionalmente, Couldn’t Stand The Weather promoveu uma mudança drástica na vida e na carreira de SRV e sua banda. Pela primeira vez o trio tinha um adiantamento da gravadora para trabalhar. Com isso aumentavam as pressões de todos os lados, e os excessos do show business acometiam de maneira impetuosa nossos heróis caipiras, que musicalmente tiraram de letra e registraram um dos grandes trabalhos dos “difíceis” anos 80.

Na véspera do lançamento do disco, SRV atendeu a revista Down Beat e disse: “Vamos continuar tocando como sempre tocamos, ou seja, arrancando os nossos corações pra fora… Isso nunca muda. Espero que muita gente ouça esse novo trabalho, mas caso isso não aconteça, bem, teremos que seguir adiante de qualquer maneira. Você sabe, eu adoro tocar blues… O que mais posso querer?”

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