As Musas do Rock Brasileiro

O rock brasileiro começou na voz de uma mulher

por Ricardo Alpendre     11 jul 2014

rita lee

O rock brasileiro começou na voz de uma mulher.

Sim, mulher, e não garota. Nora Ney, uma das maiores cantoras brasileiras da década de 1950, já contava 33 anos de idade e poucos anos de uma carreira repleta de sucessos no estilo samba-canção. Havia poucos meses, “Rock Around the Clock” conquistara o mundo na voz de Bill Haley, impulsionada pelo filme Sementes da Violência, e, em outubro de 1955, a diva de voz grave foi escolhida pela gravadora Continental para cantar em uma gravação nacional da música, lançada já no mês seguinte. Embora cantada em inglês, a aventura solitária de Nora pelo rock ‘n’ roll traz um sotaque tupiniquim: as brejeiras linhas de acordeon do Sexteto Continental (o instrumento era uma febre no Brasil exatamente naquela época). Ícone da chamada “velha guarda”, que ainda naquela década cederia seu espaço para a Bossa Nova, Nora Ney é geralmente lembrada por sua carreira no samba-canção, e quase nunca pelo seu “feito” no rock. E no selo deste primeiro 78rpm de rock ‘n’ roll no País – que ironia! – está escrito: “Ronda das Horas (Rock Around the Clock) – fox do filme da MGM”. A Odeon resolveu dar uma resposta e, em dezembro, era lançado o 78rpm de Heleninha Silveira com a versão em português de “Ronda das Horas”, com backing vocals dos Titulares do Ritmo. Detalhe: na orquestra também havia acordeon.

Ainda na ingênua temática dos amores achados e perdidos e da dança (muita dança!), o rock brasileiro teve em Celly Campello sua primeira grande representante. A estreia em disco foi ao lado do irmão Tony: o 78rpm da Odeon com “Handsome Boy”, uma rumba-calypso na voz de Celly, e “Forgive Me”, um rock-balada com Tony, precedeu uma série de hits, principalmente da cantora. Até 1962, ela dominou a cena do rock no Brasil com versões de sucessos teen norte-americanos como “Estúpido Cupido”, “Túnel do Amor”, “Lacinhos Cor-de-rosa” e “Broto Legal” (esta, uma genial versão da versão, já que Sérgio Murilo havia cantado o mesmo tema do ponto de vista do garoto), e uma adaptação do italiano: “Banho de Lua”. Ao se casar, aos 20 anos e no auge do sucesso, ela abandonou o meio artístico, voltando à cena apenas esporadicamente.

Também com uma carreira meteórica, apenas em 1959 e 1960, a bela e “classuda” Regiane causou certo furor com suas recriações em inglês no selo Young, geralmente acompanhada pelos Avalons, banda que já despontava na cena do rock instrumental. Ela abandonou os palcos cedo, em 1961, logo após ser contratada pela Odeon.

Se a lacuna deixada por Celly nunca foi propriamente preenchida tão cedo, não foi por falta de candidatas. Célia Villela, tendo antes cantado sambas, possuía um talento semelhante ao de Celly para lidar com o público adolescente e brincava com a ingenuidade e a sensualidade em “Strip Tease Rock”, mas causou mais impacto com “Conversa ao Telefone” e “Trem do Amor”, os dois lados de um 78rpm de 1960.

Naqueles anos pré-Jovem Guarda, ainda se lançaram cantoras de talento enorme. Uma delas foi Meire Pavão (a irmã do rocker Albert Pavão), tanto no Conjunto Alvorada – um girl group nacional! – quanto em carreira solo, eternizando “O Que Eu Faço do Latim” acompanhada pelos Jet Blacks. Outra? Sonia Delfino. Sobrinha de Ademilde Fonseca, Sonia teve a peculiaridade de lançar a versão nacional para “Jingle Bells” (“Sino de Belém”), em 1956. Em 1960, aos 18 anos, gravou seu primeiro LP e arrebatou corações com o rock-balada “Diga que Me Ama” (versão para “Make Believe Baby”). Durante aquela década, Sônia gravou discos, apresentou programas de TV, atuou no cinema, até se retirar em 1970.

Cleide Alves, “A Estrelinha do Rock”, também fez parte dessa primeira leva do rock brasileiro e é considerada uma das pioneiras da Jovem Guarda. Mas, daquela turma liderada por Roberto Carlos, Wanderléa foi a mulher de maior destaque. Tendo gravado pela Columbia/CBS desde 1962, ela foi escolhida para apresentar o programa que dava nome ao movimento em 1965 na TV Record, quando a emissora de Paulo Machado de Carvalho não entrou em acordo com os clubes de futebol quanto ao pagamento pela transmissão das partidas oficiais nas tardes de domingo. Aos 19 anos, a Ternurinha (ou Wandeca, para os amigos) já trazia sucessos na bagagem e, com o programa, transformou-se na segunda grande estrela do rock brasileiro.

Outros nomes tiveram peso no iê-iê-iê, como Martinha, que arrebatou entre os colegas e fãs o apelido “Queijinho de Minas”, e seguiu uma carreira de cantora e compositora após o fim da Jovem Guarda. Rosemary foi outra cantora que entrou na onda das “jovens tardes de domingo” e depois seguiu uma carreira sólida, mostrando versatilidade. Como também fez Vanusa, que, além da capacidade, sempre daria um jeito de fazer sucesso, mesmo em situações tragicômicas em apresentações e reality shows. Waldirene se proclamou a “Garota papo-firme que o Roberto falou”, cantando o rock “Garota do Roberto”, e se mostrou também versátil nas décadas seguintes. Denise Barreto provou ter talento após surgir como uma cantora, digamos, um pouco mais que inspirada em Rita Pavone. De 1966 a 1968, Lilian Knapp fez parte da dupla Leno e Lilian, que também teve sucesso com versões como “Pobre Menina” e “Não acredito”. Eles se reuniram em 1972 para lançar dois belos LPs.

A Jovem Guarda teve essas e outras divas/musas, mas, com o fim do programa televisivo e a ascensão de uma nova forma de cultura musical de massa, começou o reinado de uma verdadeira superstar: Rita Lee.

Depois de vários grupos adolescentes que acabariam dando origem aos Mutantes, Rita fez parte do trio paulistano ao lado de Arnaldo Baptista e Sergio Dias, escandalizando a cidade de São Paulo e, logo depois, o País, com sua conduta nada ortodoxa e sua música ousada: a faceta mais roqueira da Tropicália. Com a incorporação da seção rítmica (Liminha e Ronaldo Leme), os Mutantes se tornaram quinteto e, após a saída de sua cantora principal, embarcaram no rock progressivo. Rita uniu forças com Lúcia Turnbull e, com músicos que viriam a formar sua próxima banda, o duo se denominou As Cilibrinas do Éden. Participaram do festival Phono 73 e deixaram somente um registro fonográfico, lançado quase quatro décadas mais tarde. Lúcia participou, como uma luxuosa segunda voz, apenas do primeiro álbum do Tutti Frutti, banda que deu uma cara nova ao rock nacional e que, antes de Rita sair em carreira solo, seguiu promovendo a contestação e a inquietude ausentes na cena roqueira tupiniquim antes da consagração da cantora dos Mutantes.

Papel tão importante quanto o dos Mutantes e do Tutti Frutti, tiveram os Novos Baianos, banda formada por músicos de primeiríssima linha, incluindo a cantora Baby Consuelo. O espetáculo de musicalidade oferecido pela cantora no primeiro LP do grupo em 1970 e, principalmente na incrível sequência de álbuns a partir de Acabou Chorare (o segundo deles), ajudou a elevar o rock nacional a níveis de sofisticação normalmente só ouvidos em outros gêneros, do chorinho ao jazz.

Naquele início dos anos 70, em que até Maria Bethânia caiu no rock – ela se saiu muito bem na ótima “Baioque”, de Chico Buarque, no filme (e disco) Quando o Carnaval Chegar – não era surpreendente que tivéssemos em Gal Costa um “desbunde” roqueiro tão novo e tão baiano quanto a banda de Baby. Após a psicodelia de seus dois primeiros álbuns solo e da participação no álbum coletivo Tropicalia ou Panis et Circencis, ela “chutou o balde” em LeGal (1970) e em seu show registrado no LP duplo ao vivo Fa-tal – Gal a Todo Vapor (1971). Tudo isso na trajetória que a transformava em uma das vozes insuperáveis da música brasileira. Elis Regina, por outro lado, além da atitude, “roqueira” por excelência, chegou a gravar rocks com muita propriedade, como “Velha Roupa Colorida” e “Como Nossos Pais”.

Luiza Maria merece um capítulo à parte na história do rock nacional, tendo realizado em 1975 um álbum em que explora suas qualidades vocais nada convencionais (sendo mais direto, sua voz é estranha, mesmo; mas muito interessante) com um ótimo resultado, o que a levou a ser cult nas décadas seguintes. Com uma banda formada só por feras dos estúdios, Eu Queria Ser um Anjo, o LP de estreia não causou impacto no mercado, mas Luiza seguiu carreira fazendo backing vocal para Tim Maia e Ivan Lins, e gravando esporadicamente.

Olivia Byington poderia ter vencido pela beleza, como demonstram as capas de seus LPs, mas suas aventuras entre a MPB e uma espécie de folk-rock ao lado da Barca do Sol davam conta da seriedade da carreira que ela vinha trilhando na virada dos anos 70 para os 80. Nesse mesmo tempo, Jane Duboc escreveu seu nome na história do rock progressivo com sua atuação como vocalista do Bacamarte, grupo que causou impacto na cena independente com seus shows e gravou o álbum Depois do Fim, infelizmente não lançado na época, mas somente em 1983, quando a própria Jane já havia consolidado sua carreira na MPB.

Mesmo em tempos de (ainda) muito preconceito, as mulheres estavam em toda parte; inclusive no lado B das coisas da música. O grupo psicodélico Perfume Azul do Sol durou pouco além da gravação de seu único álbum, Nascimento, lançado pela Chantecler em 1974. A vocalista e pianista Ana Maria Guedes tem a reputação ter consumido LSD em quantidades absurdas. O disco foi distribuído em não mais de 100 cópias, segundo integrantes da própria banda. Outra pérola psicodélica foi a Equipe Mercado, com a voz da cantora Diana ornando as belas melodias que o grupo compunha. Em 1971, eles lançaram um compacto e participaram da coletânea Posições, da Odeon. No final da década de 1960, O Bando, com a cantora Marisa Fossa, gravou um LP homônimo pela Polydor, hoje um clássico cult, relançado pelo selo alemão Shadoks. E a psicodelia garageira dos Galaxies? Esse foi um grupo “multinacional”, com dois brasileiros, um inglês e a cantora norte-americana Jocelyn Ann Odams. Lançaram um LP, homônimo, em 1968, pelo selo Som Maior. Suely Chagas, ex-O’Seis (algo como um pré-Mutantes), montou com o guitarrista Lanny Gordin o grupo Suely & os Kantikus, que lançou um compacto pela Philips, também em 1968. Mais uma bela raridade psicodélica.

Todo aquele cenário salpicado de talentos femininos, entre as estrelas e as menos conhecidas, nos permite pensar: como seria se nas primeiras décadas do rock nacional elas já tivessem conquistado também as outras partes do palco e as bandas femininas fossem algo mais “normal” no Brasil, como hoje?

Texto originalmente publicado na poeira Zine 50.

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