As estripulias da Ave Sangria

A trajetória de um dos grandes nomes da psicodelia folk nordestina dos anos 70

por Bento Araujo     30 abr 2013

ave sangria

Em 1964, se os Rolling Stones tinham em Mick Jagger, Keith Richards, Brian Jones, Charlie Watts e Bill Wyman seu núcleo explosivo, 10 anos depois o rastilho dessa pólvora estava impregnado na arte de um grupo brasileiro. Não, não estamos sobre os fantasmas do cangaço, muito menos dos militares, e sim de um bando não menos ameaçador – mas em outro contexto, claro. Com vocês o Ave Sangria, os “Stones do Nordeste”.

A Vila dos Loucos e as viagens de Marco Polo

Para começar a abordar a história d´Ave, tem-se de fazer uma trip ao “sombrio” bairro Tamarineira, localizado em Recife (PE). Se nos dias atuais, a região já é conhecida como sinônimo de loucura – no sentido literal do termo -, em função do famoso hospital psiquiátrico que leva o nome do território, imagine no começo dos anos 70, quando o grupo Tamarineira Village foi formado.

Essa primeira formação ganhou corpo com a entrada do ex-acadêmico de direito, poeta e jornalista recifense Marco Polo Guimarães, que largou o ofício do quarto poder em São Paulo para trabalhar com artesanato em Ipanema, no Rio de Janeiro, e pouco tempo depois estava de volta a sua terra natal. Lá, o artista hippie entrou de cabeça na efervescência musical da região – onde tocavam grupos como Nuvem 33, Flaviola e o Bando do Sol – e estreitou relações com Marconi Notaro, Lula Côrtes e Laílson e o grupo Phetus.

“Havia uns músicos em Casa Amarela que queriam montar um grupo. Eles tinham os instrumentos, eu tinha as músicas e assim nasceu o Tamarineira Village”, conta o vocalista Marco Polo em papo exclusivo para a pZ. Isto aconteceu logo depois da 1ª Feira Experimental de Música de Fazenda Nova, uma espécie de Woodstock em território nordestino. “A água do festival foi batizada com LSD, então todo mundo que bebeu começou a viajar”, relembra o músico, que explica a origem do primeiro nome da banda: “foi uma alusão tanto ao nome do manicômio como também à Vila dos Comerciários, onde a maioria do povo morava.”

A mudança do nome originou-se da contratação do grupo para gravar um disco e da necessidade de profissionalização do sexteto (na verdade, eram sete membros, mas um deles não aparecia oficialmente – como veremos mais à frente).

pzarquivoverdeamarelo-ave-sangria1

Dirty Work

A gravação do primeiro disco d´Ave Sangria, homônimo, foi realizado na Cidade Maravilhosa, no estúdio da Continental. A banda já havia chegado lá com tudo decidido: o produtor, escolhido pela gravadora, foi Márcio Antonucci (ícone da Jovem Guarda), e o tempo de permanência no estúdio foi de cinco dias. “Sabíamos que Márcio era da Jovem Guarda e que provavelmente não ia entender nada do que a gente queria. Mesmo assim, ele era um cara muito legal, que escutou nossas argumentações. Mas naquele tempo era muito difícil reproduzir num estúdio o que fazíamos ao vivo. Quem viu nossos shows garante que nosso som era muito melhor ao vivo do que em disco: mais selvagem, mais barulhento, mais sujo, mais a nossa cara”, conta Polo.

Além dele, faziam parte do grupo Ivson Wanderley (guitarra solo e violão), Paulo Raphael (guitarra base, sintetizador, violão), Almir de Oliveira (baixo), Israel Semente (bateria) e Agrício Noya, mais conhecido como Juliano (percussão).

O sétimo elemento da banda, que não aparecia nas apresentações, mas foi de suma importância na história do conjunto, era Rafles José. Seu amigo Marco Polo conta um pouco mais: “Rafles foi de fundamental importância em tudo. Foi ele quem deu o nome de Tamarineira Village para a primeira formação da banda. Era também um cara de uma energia super positiva, que neutralizava os problemas com sua presença conciliadora. E afinal ele era o meu amigo. Foi através dele que conheci os outros.

Quando chegou a hora de gravar, o grupo foi enxugado, ficando apenas os que tinham se tornado músicos profissionais, que não foi o caso dele. Ainda insisti para que ele permanecesse na banda, mas foi voto vencido”.

Foi de Rafles a ideia maluca de enviar, pelo correio, um portentoso baseado para Paul McCartney. E envolvido numa “seda” especial: legítimo papel Colomy. A resposta dos Beatles foi despachada meses depois: uma foto autografada pelos quatro.

As 12 composições do álbum passeiam pela irreverência, ousadia e, claro, amor e poesia. Isto já começando pela capa, adulterada, cuja gravadora não quis arcar com os custos da arte original – elaborada pelo conceituado desenhista Lailson de Holanda Cavalcanti.

Em “Dois Navegantes”, encontramos uma composição suave feita por Almir para uma bailarina por quem ele estava apaixonado. Já em “Georgia, a Carniceira”, temos “uma homenagem a São Paulo, uma cidade mística e noturna. Um símbolo, ao mesmo tempo sedutora e terrível”, de acordo com Polo. Desta música chegou a ser gravado um clipe, para o global Fantástico, que infelizmente nunca foi ao ar. “Cidade Grande” contou com a participação especial – porém “acidental” – do finado Zé Rodrix, que havia esquecido seu instrumento no estúdio e tinha voltado até lá para buscá-lo. Ao ver a banda executando a canção, Rodrix sugeriu aos músicos uma “canja”, que foi aceita na hora. E o que falar sobre “Seu Waldir”? Bom, esta faixa merece um parágrafo inteiro.

Salientando, o ano era 1974. Época na qual o glam rock estava em alta mundo afora. Já no Brasil, os paulistas dos Secos e Molhados aderiram ao estilo, mas ainda vivíamos sob um regime ditatorial, e a terra natal d´Ave Sangria situava-se em um pólo onde o machismo e os velhos valores e costumes se sobressaíam: o Nordeste. Então imagine o que era para a grande maioria daquele povo ouvir, na voz de um homem, versinhos do tipo “Seu Waldir, o senhor machucou meu coração / Fazer isto comigo, seu Waldir / Isto não se faz não / Eu trago dentro do peito / Um coração apaixonado / Batendo pelo senhor / O senhor tem que dar um jeito / Se não eu vou cometer um suicídio / Nos dentes de um ofídio vou morrer/ Eu quero ser o seu brinquedo favorito / Seu apito, sua camisa de cetim…”. Então o caldo entornou: pouco menos de um mês depois do lançamento, o elepê foi censurado. A Polícia Federal fez o recolhimento do material de todas as lojas, e as rádios foram proibidas de tocá-lo. A música foi considerada pelas autoridades “um insulto à moral da família pernambucana e uma apologia ao homossexualismo”.

“Quando eu trabalhava no Jornal da Tarde, cheguei a ser sequestrado por um grupo de rapazes (provavelmente do CCC – Comando de Caça aos Comunistas, um grupo paramilitar) que ficaram passeando comigo pelo centro da cidade enquanto propunham que eu abandonasse a reportagem que estava fazendo caso tivesse amor à vida. Foi bastante assustador. Mas o recolhimento do disco foi uma paulada na cabeça!”, recorda Polo.

O material chegou a ser relançado, porém sem a faixa “nociva”, suposto motivo pelo qual a TV Globo deixou de veicular o clipe de “Geórgia, a Carniceira”. O interesse da mídia em geral também já tinha esfriado. Com o orçamento sempre apertado, os integrantes do conjunto chegaram até a gravar vinhetas para televisão e material para rádios – no caso, jingles. Tal situação levou o grupo, conforme relata seu vocalista, a cair em um vácuo, após dois árduos anos de batalha para a gravação do álbum. “Alguns músicos tinham se casado e já tinham filhos. Então Alceu Valença propôs contratar os músicos para tocar com ele, garantido o pagamento de cachês, shows, viagens, etc. Eles vieram me contar e eu liberei o pessoal”, complementa o vocalista a respeito do fim da banda.

20090603100002

It´s only rock´n´roll, mas eu goooooooostchu!

Não era somente “Seu Waldir” que deixava o povo chocado. As apresentações d´Ave Sangria resgatavam a malícia e encenações das bandas inglesas do anos 60 e 70, principalmente dos Stones. Com trejeitos à la Mick Jagger, retocado com batom (mertiolate, segundo Rafles) e mergulhado no universo pitoresco da androginia, os integrantes do grupo vestiam roupas escandalizantes, ostentavam a vasta cabeleira, chacoalhavam o esqueleto e horrorizavam os conservadores em geral. Reza a lenda que rolava até troca de beijos entre os membros da banda em cima do palco…

Marco Polo conta sobre suas memórias mais vivas dos primeiros concertos do conjunto, em Pernambuco: “O assédio maior era das meninas da Zona Sul. As ‘boizinhas’, ou ‘cocotinhas’ (hoje se diria patricinhas), que antes nem tomavam conhecimento da nossa existência, passaram a nos convidar para sair de carro e, naturalmente, faturá-las. Nos últimos shows, a lembrança mais viva era de que na platéia se misturavam essas pessoas da alta burguesia com o pessoal do morro, a plebe rude e ignara, unindo-os o fato de serem todos jovens”.

Além de Pernambuco, a banda chegou a tocar na Paraíba, Rio Grande do Norte e Bahia. A divulgação das apresentações era feita de forma simples, mas com muita garra. “Os próprios membros da banda iam todos às televisões e rádios da região, pregavam faixas, colavam cartazes nas paredes e distribuíam panfletos, tudo isso em torno de 15 dias antes dos shows. Às vezes chegávamos a virar a noite fazendo isso”, explica Polo.

Quem acusa a Ave Sangria de falta de originalidade está redondamente enganado. Pode-se dizer que a banda, além de suas facetas inovadoras no Brasil apreensivo dos anos 70, foi uma das precursoras do manguebeat. Quase duas décadas antes de esse termo ser cunhado, o grupo já tinha em sua música a mistura de baião e maracatu, ritmos regionais, com uma levada de rock pesado.

Texto de Lucas Mosca originalmente publicado na poeira Zine 28.

 

Faça um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *