The Remains

De Boston surgiu uma das mais imponentes bandas de garagem dos anos 60, responsáveis pelo mini-hit “Don’t Look Back” e pela abertura dos shows da última turnê dos Beatles, em 1966.

por Bento Araujo     17 nov 2014

ca353ec6b5574ac3d0951d0666c5f992Enquanto a maioria das bandas norte-americanas estava deixando seu cabelo crescer e escolhendo que música regravar de uma banda inglesa, um conjunto de Boston se concentrava em lançar um álbum de estreia com uma boa quantidade de material autoral e em abrir shows para os próprios Beatles.

Durante o verão de 1963, o jovem Barry Tashian estava estudando e viajando pela Europa. Saiu de sua cidade natal, Boston, Massachusetts, na Costa Leste dos EUA, com sua mochila nas costas. Por alguma razão ele foi parar em Londres.

Numa noite, num clube noturno qualquer, Barry assistiu à apresentação de uma banda amadora, tão amadora que ele sequer guardou o nome. O que importa é que eles tocaram canções de Eddie Cochran e Muddy Waters e literalmente arrasaram com os neurônios do jovem norte-americano. No palco, os integrantes pareciam conversar com seus instrumentos. Essa interação telepática em nome do rock ‘n’ roll mudaria os rumos de Barry Tashian para sempre. Foi uma experiência dramática, até visionária.

Depois dela, Barry resolveu voltar para casa e montar a sua banda, Barry & The Remains. Na bagagem, trouxe discos, lembranças e, principalmente, o micróbio do rock britânico. O jovem Tashian desembarcou nos EUA quase que antevendo o que estava por vir, a British Invasion.

Boston, atualmente em alta nos noticiários em função do atentado terrorista na maratona local, é uma cidade incrível. Conhecida como “um pedaço da Europa nos EUA”, Boston tem uma efervescência cultural graças ao fato de ser grande base de colônias irlandesas, italianas e portuguesas. Suas famosas universidades agrupam jovens do mundo todo, e, onde tem jovens, tem rock ‘n’ roll. Centenas de nomes que emplacaram nos anos 1960, 1970, 1980 e 1990 vieram da cidade: Aerosmith, J. Geils Band, The Cars, Jonathan Richman e seu Modern Lovers, Tom Rush, Dick Dale, James Taylor, Morphine, Pixies, Boston, Joan Baez, Extreme etc. Isso sem contar os grupos que fizeram parte do Bosstown Sound, uma cena criada por volta de 1967/1968, visando rivalizar o agito psicodélico de São Francisco, lá do outro lado dos EUA. Dentre os conjuntos dessa cena bostoniana estavam o Ultimate Spinach, Beacon Street Union, Orpheus, Eden’s Children, Earth Opera, The Ill Wind, Bagatelle, Listening, The Art of Lovin’ e muitos outros. Antes desse agito todo acontecer, duas bandas foram cruciais no rock feito em Boston, The Lost e Barry & The Remains.

Já reinstalado em Boston, Barry Tashian decidiu trabalhar imediatamente. Como já cantava e tocava guitarra, resolveu escalar músicos de vários conjuntos amadores que se apresentavam na Boston University. Foi assim que chegou a Bill Briggs (teclados, vocais), Vern Miller (baixo, vocais) e Rudolph “Chip” Damiani (bateria). Reunidos em 1964, a grande sacada de Tashian e seus comparsas foi a de apostar em material autoral. Esse seria o diferencial, o que colocaria a banda à parte de todas as demais da região de Boston, mais preocupadas em executar com precisão os sucessos das paradas.

Tashian era jovem e rebelde, desejava então proclamar sua independência através de sua música. Evidentemente se inspirou em alguém nesse início, principalmente nos Rolling Stones, outra banda novata que lançava sua estreia naquele ano, recriando com propriedade e veneno, grandes hinos do R&B norte-americano.

“Vamos montar uma banda e realmente escutar o que cada integrante está tocando”. Esse era o mote de Tashian com o Remains, baseado na experiência que ele teve em Londres, um ano antes. Com essa premissa, o grupo criava um novo padrão na cena de Boston. O som que geravam nos ensaios e nas primeiras apresentações era poderoso, cadenciado e com uma pressão rítmica incrível. A massa sonora parecia surgir em ondas dos amplificadores. Alcançar esse clímax todas as noites virou obsessão na mente de Tashian, mais ou menos o que os Yardbirds vinham fazendo lá do outro lado do oceano. Com essa filosofia de escutar uns aos outros, o Remains saiu na frente das demais bandas americanas do período. As jams rolavam soltas, mas, no final daquela loucura toda, o grupo sempre se achava. Desafiador e ambicioso para jovens na casa dos 20 anos de idade.

Tashian fez uma declaração interessante no livro The Sound Of Our Town, de Brett Milano, alegando que a essência de sua banda estava nos primeiros shows, em clubes e fraternidades universitárias. Em seu ponto de vista, o que veio na sequência foi apenas a “descida do morro”. Tashian: “Aqueles primeiros shows foram tudo pra gente. Trabalhando como um time, tendo consciência um dos outros dentro da banda e não apenas olhando a multidão e tocando suas partes. Naquela época nos olhávamos e éramos aptos a nos comunicar musicalmente, essa era a mágica”.

Em 1965, alguém da Epic Records vivenciou isso num show da banda e espalhou a novidade pelos escritórios da gravadora. No ano seguinte um contrato foi assinado e dez músicas foram registradas em estúdio pelo grupo, agora atendendo pelo nome apenas de The Remains.

Frustrados com o resultado final da gravação e com a Epic, a banda resolveu sondar a gravadora americana dos Beatles, a Capitol Records, que encomendou uma sessão “ao vivo em estúdio” para sacar mais o som da banda. Com tempo cronometrado e urgência, essa gravação demo do grupo conquistou muitos apreciadores, principalmente quando foi lançada pela Sundazed como A Session With The Remains. Se o contrato com a Capitol não veio a se concretizar, para Tashian, pelo menos a sua banda tinha um registro em estúdio mais condizente com suas apresentações ao vivo.

Como nada parecia acontecer, Tashian convenceu seus companheiros de banda a se mudarem para Nova York, onde tinha vários contatos. Chegando à cidade, mudanças começam a acontecer. O baterista Chip Damiani deixou o conjunto e para seu lugar veio um jovem de 17 anos chamado N. D. Smart. Depois do Remains, Smart tocou com diversos grupos e artistas, como Mountain, Gram Parsons, The Hello People, Todd Rundgren etc. Um grande feito para a banda nessa época foi aparecer tocando no The Ed Sullivan Show, talvez o show de TV mais popular dos EUA naquela altura.

Através de seu manager, o Remains conseguiu outro grande feito naquele ano de 1966: abrir, por três semanas, alguns shows dos Beatles pelos EUA. Além de executarem seu próprio set, o Remains ainda serviu de banda de apoio a nomes que também estavam no cast, como Bobby Hebb e The Ronettes. O grupo The Cyrkle também participou da excursão. O Remains esteve presente inclusive no último show da história dos Beatles, no Candlestick Park, em São Francisco. “Último show” não considerando, é claro, o “show do telhado” três anos depois, em Londres.

2115_The-Remains360470Nos intervalos das 20 apresentações que abriram para os Beatles, Barry Tashian escutava música indiana com George Harrison, que gostava da companhia de seu novo amigo, e o levava nas mais badaladas festas. Numa dessas ocasiões, conheceu outros dois ídolos, David Crosby e Roger McGuinn.

Muitos detalhes sobre essa turnê podem ser conferidos na biografia de Barry Tashian, chamada Ticket To Ride, onde ele confessa: “Em mais de uma ocasião, John Lennon comentou que gostaria de ter a energia que o Remains tinha em suas apresentações”. No entanto, o show em São Francisco, o último da tour, não deixou boas lembranças em Tashian: “A banda estava prestes a se separar, tínhamos constatado que não emplacaríamos nenhum sucesso nas paradas. A minha lembrança do show é a escuridão e o fog. Estava frio e ventava bastante. A plateia ficava nas arquibancadas, bem longe do palco. Minha sensação era a de que a nossa música estava sendo levada ao mar pelo vento. Tenho essa lembrança desse último show, uma grande escuridão”.

A expectativa era enorme logo após os shows com os Beatles. O Remains havia tocado para milhares de pessoas por todo o país. No momento de “virada de mesa”, veio o inesperado: Barry Tashian acabou com sua banda, sentindo que, comercialmente, seu grupo já havia feito o que era possível, e que nenhum sucesso estaria em seu caminho. O início da era psicodélica dentro do rock foi apenas mais uma desculpa pra Tashian sair dos holofotes. Se a banda tivesse surgido já na era dos álbuns, a era pós Sgt. Pepper’s, ao invés da era dos compactos, tudo talvez teria sido diferente. Prova disso é o excelente disco de estreia do conjunto, que chegou às lojas quando a banda nem mais existia.

The Remains foi lançado pela Epic, em setembro de 1966, depois da excursão da banda com os Beatles, o que foi uma tremenda vacilada do selo, que, literalmente dormiu no ponto, ao invés de aproveitar o momento.

Musicalmente, o resultado do disco desagradou Tashian e os demais integrantes, todos alegando que as sessões, de maneira alguma, captaram a energia ao vivo do conjunto. Por todos esses anos, essa opinião se tornou uma espécie de consenso. Muitas pessoas nem ao menos davam uma chance ao disco, para assim ter uma conclusão particular. Claro que é frustrante quando um disco não representa uma grande banda, mas é mais frustrante ainda quando este álbum em questão é bom pacas. Esse é o caso de The Remains. A capa colabora para o status cult do disco, com o quarteto vestido de maneira impecável, imerso num efeito psicodélico e caleidoscópico que depois viria a ser reproduzido na capa de The Piper at the Gates of Dawn, a estreia do Pink Floyd. A arte gráfica do álbum do Remains também influenciou a capa do primeiro trabalho dos Doors, lançado, assim como o Floyd, também no ano seguinte. O logo vinha num chamativo tom de verde, talvez para aumentar a conexão com a cidade de Boston, que adotou a cor devido à sua populosa e tradicional colônia irlandesa.

O disco é o elo de ligação entre a beatlemania e o rock psicodélico, já que o Remains era mesmo uma das bandas norte-americanas mais incríveis do período, ao lado do Nazz de Todd Rundgren e do Love de Arthur Lee. Para final de 1966, muito do material pode soar datado, já que se tratava de gravações fragmentadas feitas pelo grupo no ano anterior.

O sempre antenado Greg Shaw foi o primeiro a publicar uma resenha, em seu cultuado zine Mojo Navigator. Na edição #11, de 22 de novembro de 1966, ele escreveu: “Uma incursão realmente interessante rumo à sonoridade hard rock, utilizando piano elétrico, órgão, técnicas de overdub, guitarra solo bem executada, seção rítmica exemplar e uma ótima performance vocal de Barry Tashian. O Remains é despretensioso sobre as origens de sua música e também sobre a audiência que estão se projetando. Por essa razão, eles surgem tão naturais neste LP”.

remains1Shaw estava completamente correto em sua resenha. Apesar de novata e inexperiente, a banda parece muito à vontade em estúdio, como mostra o quase-hit do álbum, “Don’t Look Back”, convertido posteriormente a hino do rock de garagem graças à sua inclusão na compilação Nuggets: Original Artyfacts from the First Psychedelic Era, 1965–1968. O “curador” da coisa toda, Lenny Kaye, escreveu no encarte: “Mencione o nome The Remains para alguém que viveu em Boston durante os anos dourados de 1965/1966, e você irá escutar aqueles gemidos de prazer que acompanham somente os verdadeiramente grandes nomes do rock”. A energia ouvida em “Don’t Look Back” é frustração pura, demonstrando o quanto eles ansiosamente e desesperadamente buscavam por um hit. Nas mentes ingênuas de Tashian e dos rapazes, eles poderiam chegar lá, caso, apenas, colocassem a dose certa de entusiasmo na gravação.

A interpretação isolada de Tashian em “Lonely Weekend”, de Charlie Rich, e a linha de baixo de Vern Miller já coloca o Remains à toda prova. Miller abria aqui caminho para baixistas como Mel Schacher (Grand Funk Railroad), Dickie Peterson (Blue Cheer) e Kenny Aaronson (Dust). Na faixa de abertura, “Heart”, uma recriação da canção de Petula Clark, Tashian soa tão inovador como Arthur Lee. Depois de um início sensual e climático a coisa descamba para o puro freakbeat. Se “Once Before” parece algo que Lennon & McCartney perderam por aí; a balada “Thank You” soa como algo deixado de lado por Jagger & Richards. “You Got A Hard Time Coming” é baseada em Ray Charles; “Time of Day” é a mais pesada de todas e “Why Do I Cry” acabou pintando depois no box de quatro CDs Nuggets, expandindo o conceito da compilação original de 1972. Outro destaque do álbum é a versão de “Diddy Wah Diddy”, canção de Willie Dixon e Bo Diddley, imortalizada por esse último. É raro uma banda de garotos brancos de classe média recriar algo desse tipo com tanta propriedade.

Jon Landau, jornalista e produtor de discos associado a nomes como MC5 e Bruce Springsteen foi outro entusiasta da sonoridade praticada pelo Remains. Na época, ele escreveu, na revista Crawdaddy!, que a música praticada pelo grupo era exatamente aquela que deveria ser mostrada a alguém não familiarizado com rock – alguém que simplesmente pergunta: “O que é rock?” Dá-lhe The Remains, receitava Landau. Além do elepê completo, a Epic soltou no mercado cinco compactos do Remains dentre os anos 1965-1966.

Apesar da qualidade desses compactos e principalmente do álbum, tudo estava acabado logo após a turnê com os Beatles. Tashian se mudou para Los Angeles, onde tocou com Gram Parsons (ainda um ilustre desconhecido) e demais integrantes da International Submarine Band. Ajudou, inclusive, junto do tecladista William Briggs, a fundar o Flying Burrito Brothers, mas saiu da banda antes que gravassem seu primeiro álbum. Mais tarde, tocou com Bobby Keys e no disco GP, de Gram Parsons, e entrou para a banda de Emmylou Harris, por onde ficou por quase dez anos. Tashian também deu uma força na gravação de um grande disco prog-psicodélico obscuro dos anos 1970, The Visitation, lançado em 1972 pela banda Chirco. O baixista Vern Miller voltou para Boston, onde montou uma banda chamada Crow, com a novata Donna Summer no vocal.

Uma volta do grupo foi cogitada nos anos 1970, mas, segundo Tashian, eles apenas “não estavam prontos” para tal volta, que veio a acontecer somente em 1998.
Com a internet, fãs do mundo todo se uniam e pediam uma volta do Remains, que se reuniu com sua formação original para uma apresentação na Espanha. Depois foi a vez de tocarem no festival Cavestomp, em Nova York, famoso por ressuscitar carreiras de bandas de garagem do passado.

Em 2002, gravaram, “milagrosamente” – segundo Tashian, seu segundo trabalho, Movin’ On, e desde então vem fazendo um ou dois shows por ano, nos EUA e em diversos países europeus. Recentemente, a banda voltou a ficar em alta no underground graças ao lançamento do documentário America’s Lost Band, produzido pelo fã de longa data, Fred Cantor.

“O que teria acontecido se tivéssemos emplacado um grande hit nos anos 1960? Do jeito que as coisas iam indo, com as drogas, grandes chances de algum de nós estar morto agora, ou de estarmos na corte, processando uns aos outros”, relatou Tashian recentemente na revista britânica Shindig!. “Ao invés disso, vivemos bem hoje em dia e estamos ainda aptos a tocar junto. Nos amamos, de verdade. É ótimo poder juntar os mesmos caras, 47 anos depois e, ainda assim, fazer rock. É uma história feliz”.

Artigo originalmente publicado na pZ 48

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